Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Classe Média - Max Gonzaga

100 livros essenciais da literatura brasileira

Livros



Texto Helio Ponciano e Marcelo Pen, via Revista Bravo!

Dom Casmurro, Macunaíma, O Tempo e o Vento e outras obras fantásticas que você deve ler uma vez na vida

Quais são os 100 livros fundamentais, essenciais, imperdíveis da literatura brasileira? Que romance, poesia, crônica ou conto você não pode deixar de ler na vida? Dom CasmurroBrás CubasMacunaíma, Sargento de MilíciasGrande Sertão Veredas e outras grandes obras do Brasil. A revista Bravo selecionou os 100 melhores livros dos melhores autores do país. Aqueles clássicos que caem no vestibular com 100% de certeza. Um ranking dos livros mais importantes do Brasil. Veja a lista no final do texto ou siga as dicas de 17 educadoras que selecionaram os livros essenciais para ler dos 2 aos 18 anos e chegar a vida adulta com boas referências, no hotsite Biblioteca Básica.


Escritores costumam ser, até por ofício, bons frasistas. É com essa habilidade em manejar palavras, afinal, que constroem suas obras, e é em parte por causa dela que caem no esquecimento ou passam para a história. Uma dessas frases, famosa, é de um dos autores que figuram nesta edição, Monteiro Lobato: "Um país se faz com homens e livros". Quase um século depois, a sentença é incômoda: o que fazer para fazer deste um Brasil melhor? No que lhe cabe, a literatura ainda não deu totalmente as suas respostas. 


Outro grande criador de frases, mais cínico na sua genialidade, é o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, outro autor representado nesta edição. Dizer que "toda unanimidade é burra" é muito mais que um dito espirituoso: significa mesmo uma postura em relação às coisas do mundo e do homem tão crucial quanto aquela do criador do Sítio do Picapau Amarelo. 



É evidente que o ranking das 100 obras obrigatórias da literatura brasileira feito nesta edição não encontrará unanimidade entre os leitores. Alguns discordarão da ordem, outros eliminariam títulos ou acrescentariam outros. E é bom que seja assim, é bom que haja o dissenso: ficamos longe da burrice dos cânones dos velhos compêndios e da tradição mumificada. 



Embora tenha sua inevitável dose de subjetividade, a seleção feita nesta edição, contudo, está longe de ser arbitrária. Os livros que, em seus gêneros (romance, poesia, crônica, dramaturgia) ajudaram a construir a identidade da literatura nacional não foram desprezados (na relação geral e na ordem). Nem foram deixados de lado aqueles destacados pelas várias correntes da crítica, muito menos os que a própria revista BRAVO!, na sua missão de divulgar o que de melhor tem sido produzido na cultura brasileira, julgou merecer.



O resultado é um guia amplo, ao mesmo tempo informativo e útil. Para o leitor dos livros de ontem e hoje, do consagrado e do que pode apontar para o inovador. Não só para a literatura, mas também, como queria Lobato, para os homens e para o país que ainda temos de construir. A seguir, os 100 livros essenciais da literatura brasileira, listados em ordem alfabética de autor. Leia e divirta-se!

Adélia Prado: Bagagem 

Aluísio Azevedo: O Cortiço

Álvares de Azevedo: Lira dos Vinte Anos - Noite na Taverna 


Antonio Callado: Quarup 

Antônio de Alcântara Machado: Brás, Bexiga e Barra Funda 


Ariano Suassuna: Romance d'A Pedra do Reino

Augusto de Campos: Viva Vaia 


Augusto dos Anjos: Eu 

Autran Dourado: Ópera dos Mortos

Basílio da Gama: O Uraguai

Bernando Élis: O Tronco

Bernando Guimarães: A Escrava Isaura

Caio Fernando Abreu: Morangos Mofados 


Carlos Drummond de Andrade: A Rosa do Povo - Claro Enigma

Castro Alves: Os Escravos - Espumas Flutuantes

Cecília Meireles: Romanceiro da Inconfidência - Mar Absoluto

Clarice Lispector: A Paixão Segundo G.H. - Laços de Família

Cruz e Souza: Broquéis 

Dalton Trevisan: O Vampiro de Curitiba

Dias Gomes: O Pagador de Promessas 


Dyonélio Machado: Os Ratos 


Erico Verissimo: O Tempo e o Vento

Euclides da Cunha: Os Sertões 


Fernando Gabeira: O que é Isso, Companheiro?

Fernando Sabino: O Encontro Marcado 

Ferreira Gullar: Poema Sujo

Gonçalves Dias: I-Juca Pirama 


Graça Aranha: Canaã

Graciliano Ramos: Vidas Secas - São Bernardo

Gregório de Matos: Obra Poética

Guimarães Rosa: O Grande Sertão: Veredas - Sagarana

Haroldo de Campos: Galáxias 

Hilda Hilst: A Obscena Senhora D

Ignágio de Loyola Brandão: Zero

João Antônio: Malagueta, Perus e Bacanaço

João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina

João do Rio:A Alma Encantadora das Ruas

João Gilberto Noll: Harmada 


João Simões Lopes Neto: Contos Gauchescos

João Ubaldo Ribeiro: Viva o Povo Brasileiro

Joaquim Manuel de Macedo: A Moreninha

Jorge Amado: Gabriela, Cravo e Canela - Terras do Sem Fim

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu 


José Cândido de Carvalho: O Coronel e o Lobisomen

José de Alencar: O Guarani -   Lucíola

José J. Veiga: Os Cavalinhos de Platiplanto

José Lins do Rego: Fogo Morto

Lima Barreto: Triste Fim de Policarpo Quaresma

Lúcio Cardoso: Crônica da Casa Assassinada 


Luis Fernando Verissimo: O Analista de Bagé

Luiz Vilela: Tremor de Terra

Lygia Fagundes Telles: As Meninas - Seminário dos Ratos

Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas - Dom Casmurro

Manuel Antônio de Almeida: Memórias de um Sargento de Milícias 


Manuel Bandeira: Libertinagem - Estrela da Manhã 


Márcio Souza: Galvez, Imperador do Acre 


Mário de Andrade: Macunaíma - Paulicéia Desvairada 


Mário Faustino: o Homem e Sua Hora

Mário Quintana: Nova Antologia Poética

Marques Rebelo: A Estrela Sobe 


Menotti Del Picchia: Juca Mulato

Monteiro Lobato: O Sítio do Pica-pau Amarelo

Murilo Mendes: As Metamorfoses

Murilo Rubião: O Ex-Mágico

Nelson Rodrigues:  Vestido de Noiva - A Vida Como Ela É

Olavo Bilac: Poesias 


Osman Lins: Avalovara 


Oswald de Andrade: Serafim Ponte Grande - Memórias Sentimentais de João Miramar 


Otto Lara Resende: O Braço Direito 


Padre Antônio Vieira: Sermões 


Paulo Leminski: Catatau 


Pedro Nava: Baú de Ossos

Plínio Marcos: Navalha de Carne

Rachel de Queiroz: O Quinze

Raduan Nassar: Lavoura Arcaica - Um Copo de Cólera

Raul Pompéia: O Ateneu 


Rubem Braga: 200 Crônicas Escolhidas

Rubem Fonseca: A Coleira do Cão

Sérgio Sant'Anna: A Senhorita Simpson 


Stanislaw Ponte Preta: Febeapá 

Tomás Antônio Gonzaga: Marília de Dirceu - Cartas Chilenas

Vinícius de Moraes: Nova Antologia Poética

Visconde de Taunay: Inocência

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Ave Maria em Aramaico, por Magda El Roomy

Capitalismo: bem-vindo ao mundo real

GÊNESIS

Wilhelm Reich

Dorme no paraíso o homem.

Ainda em estado de gestação,
o mal sendo-lhe adicionado em pequenas
       porções.

Dorme o homem e sente-se só.

Sonha com algo que não conhece,
mas sente e se
enrijece.

Dorme o homem
e o deus-operador
de uma sua costela,
uma simples porção
faz a verdadeira revolução sexual,
velho Reich:
       A mulher. 


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Cada um no seu lugar

Cena Legislativa


Primeiramente, condenou-se a pomba
Por amar uma paz entorpecente
Onde o leão perde a juba e a hiena os dentes. 

Depois, condenou-se no cordeiro
A perigosa dúvida que o anima.
O rio dos lobos corre sempre para cima.

Condenou-se a cigarra, finalmente,
Pelo crime de cantar nas horas vagas
Que a faina das formigas não tem paga.

Consolidada a ordem, festejou-se.
E o leão rugindo, a hiena rindo,
Os trabalhos foram dados por bem findos.


José Paulo Paes

Não é por ser lésbica...

domingo, 22 de fevereiro de 2015

10 aforismos de Confúcio para um relacionamento perfeito

image

Por , via DCM
Três sílabas explicam o fenômeno da China. Con-fú-cio. Os chineses seguem os ensinamentos de Confúcio há 2500 anos. Confúcio é um semideus na China. Nunca escreveu um livro, mas discípulos atentos registraram o que viram e ouviram num pequeno livro chamado Analectos.
É fácil, prático, simples de entender. Não tem abstrações, não tem metafísica, não tem a enrolação pseudoerudita tão comum nos filósofos ocidentais, sobretudo os modernos e franceses. A China seguiu Confúcio e deu no que deu.
Pode dar certo com você também, por que não?
Adaptei alguns ensinamentos do Mestre, como o chamavam seus seguidores, às coisas do coração. Apenas para facilitar, vou escrever sob a perspectiva masculina, mas é claro que tudo serve também para as mulheres. Basta trocar o gênero nos aforismos.
Para ambos serve também uma frase específica de Confúcio, tão grande em estatura moral que seus contemporâneos lhe atribuíam fisicamente a altura improvável de 2 metros e 30, algo que 25 séculos depois faria o sábio chinês olhar de cima para baixo os grandalhões da NBA: “Nunca conheci ninguém que preferisse a sabedoria ao sexo.” Se sua altura parece francamente exagerada, é fato que Confúcio conheceu muita gente na China em que viveu.
1) Não lamente não ter uma mulher interessante e sim não se tornar digno dela; não sofra porque ela não reconhece você e sim porque não merece ser reconhecido;
2) Os defeitos da mulher a definem. É exatamente pelos defeitos que você pode avaliar as virtudes dela;
3) A mulher que se apressa demais no amor não vai longe; aquela que procura pequenas vantagens no relacionamento perde as grandes coisas;
4) Com uma mulher honesta, fale francamente e aja abertamente; com uma mulher perigosa, modere a língua;
5) Se você se dirige a uma mulher sem antes verificar se ela está prestando atenção em você, é cego;
6) Se você se envergonha de suas roupas, não merece ser escutado por ela;
7) O autocontrole raramente leva ao mau caminho; prefira as mulheres que o têm;
8 ) Mais importante do que o que a mulher diz é o que faz;
9) Não pense três vezes antes de agir em relação a uma mulher: duas são suficientes;
10) Não tenha esperança de encontrar uma mulher perfeita; fique feliz se achar uma que tenha princípios.

Poema para Galeano


Releio, depois dos anos,
‘As Caras e as Máscaras’ de Galeano.

A memória do fogo me vem,
salta pelos poros
e depois reentranha-se nas hospedarias
da imensa madrugada.

Aqui estamos,
aos teus pés, América!

Quem tocará
a índole do condor?

Romperá o tigre azul,
entre céus andinos,
por toda a cordilheira?

Qual dos teus pais, filhos da terra malsã,
te acolherá quando a zombaria
arrancar de teus braços
a tenra idade e o ouro,
depois de te condenar à sífilis e a fome,
quem nascerá com espadas nas mãos?

Vento em ti, canto de flechas,
rios do centro do mundo, irmãos da igualdade,
perdão e castigo.

Vento em ti, capitães do medo,
ataúdes e os sudários das mãos infantis,
dores em quatro ventos
e as selvas aquecidas por úmidas árvores gigantes.

Crescerá em teu ventre os mares revoltosos, o cais,
o sangue e o destino.

Em noites puras,
o sol será trazido pelo mais velho dos pássaros.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Emprego ideal

O Cão Sem Plumas

João Cabral de Melo Neto

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

João Cabral de Melo Neto