Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

RIO-PARIS-RIO E OS ESTRANGEIROS-EXILADOS

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Vista das cidades do Rio de Janeiro e Paris

Dentro de todo estrangeiro grita um exilado. Seja por motivo político, econômico, social ou mesmo afetivo, estrangeiros-exilados carregam a beleza e a melancolia do desterro mundo afora, peregrinos, migratórios, deixando o familiar rumo ao estranho. São heróis, anti-heróis expatriados que um dia se foram, a rodar mares e continentes.

Escrevi o romance Rio-Paris-Rio para falar desse estar-no-mundo-entre-mundos. Do ir-e-vir entre culturas. Mais precisamente daqueles que preferiram o exílio ao terror imposto por ditaduras, como a que assolou o Brasil nos anos 1960/70.

Quis pensar ficcionalmente os efeitos do autoritarismo que regeu militarmente gestos, afetos, rotinas de toda uma população, dia a dia, de forma criminosa e silenciosa. Aí incluídos os exilados. Afinal, a travessia de uma fronteira nem sempre a apagava, pelo contrário, só a realçava.

Maria e Arthur são os meus personagens (e companheiros) nessa ficção que margeia extremos, equilibrando-se entre amor/política, tropical/temperado, esquerda/extrema-direita. Inventei-os jovens, bonitos, livres, crescidos no ingênuo Rio de Janeiro pré-golpe de 1964, cada qual numa família, cada família em seu status quo. E os fiz se encontrar – e flanar – na mítica Paris, uma das mais belas cidades do mundo, a mais literária, simétrica, cenográfica. 
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Vista de Paris de Montmartre
Saint-Michel, Saint-Germain-des-Prés, Pont des Arts. Fiz os dois perambularem pelos bulevares e ruas tortas que levam ao Sena, revolucionados, um no corpo do outro. Corpo-cidade, corpo-exílio. Na arrogância de suas juventudes, Maria e Arthur dão o passado (infância, família, ditadura) como enterrado e passam a fazer de um o continente do outro, fora de toda cartografia, de toda política.

O tempo, no entanto, passa. E eles aos poucos se dividem entre a explosão de liberdade do movimento de Maio de 68, que vivem intensamente ao lado dos estudantes franceses, e a repressão no Brasil, que nunca deixou de assombrá-los. Porque ditaduras são assim, totalitárias, pegajosas, ainda que à distância de um ou dois oceanos.

Nesse exercício de escrever sobre o estrangeiro, contei com a minha própria vivência, já que fui eu mesma estrangeira (e em Paris). Trilhei cada pedaço de rua descrito no romance. Frequentei cafés e bibliotecas que meus personagens um dia frequentariam. Fiz um pós-doutorado em literatura na mesma Sorbonne onde Maria estudaria filosofia. Escolhi um bonito prédio na rua Cujas, no Quartier Latin, onde Maria e Arthur pudessem morar. E sempre que eu passava pelo edifício, espichava o olhar até o sexto andar, a tempo de vê-los na janela, cigarro na boca, fumando suas alegrias e angústias.

Esse exercício de transpor a cidade do início do século XXI para a dos anos 1960/70 me deu por muitos anos a sensação de flanar por cidades superpostas, a real e a ficcional, caminhando num espaço e num tempo só meu – que dividiria com o leitor, um dia, no instante da leitura. Isso só foi possível por Paris ser uma cidade que pouco muda, num país que pouco muda, resistente, apegado aos seus monumentos, tradições, às suas cores pastel. Aliás, somente graças a todo um histórico de resistências, ainda temos Paris. 
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Vista de Montmartre e Basílica Sacré-Cœur ao fundo
Isso não faz desse romance uma autoficção, bien entendu. A história de Maria e Arthur é ficção pura, mas flerta com a autoficção O minotauro, de Jorge Bastos, que li há muitos anos, de uma verdade e de uma estética fascinantes. Trazia um tanto da efervescência da época, daquela juventude capaz de mudar tudo o que até então se pensava como juventude.

Gostaria de ter sido jovem como Maria e Arthur naqueles anos, mas não. Quando nasci, o Brasil já era governado por militares e passei a infância numa bolha de alienação. Com o medo imposto à população, a censura à imprensa e o boicote a toda forma de arte minimamente reflexiva, eu assistia a desenhos animados com heróis japoneses bizarros na hora do almoço e novelas alienantes na hora do jantar.

Lembro-me principalmente do quanto odiava Educação Moral e Cívica, matéria dada na escola num tom de lição de moral patriótica sob ordem militar. Nada aprendia com aquelas aulas, ao contrário de outras que me estimulavam a inteligência. Ainda que ignorasse o que acontecia ao redor, desconfiava.

Somente quando acordei para a adolescência, vi um dia, numa banca de jornal, uma revista que estampava a foto do jornalista Vladimir Herzog enforcado numa cela. Foi quando soube do assassinato de brasileiros que ousaram resistir. Tive muita vergonha, por mim, por todos nós. 
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Elementos da capa de Rio-Paris-Rio
Com o tempo vieram mais informações. Presos eram torturados, presas eram estupradas por representantes do mesmo governo que me dava lição de Moral e Cívica. A cada relato, eu ficava cada vez mais grata a todos os que resistiram, de uma forma ou de outra.
Muito já se escreveu sobre o período da ditadura, não faltando ótimos livros que li e reli numa pesquisa incansável. Na França, consultei todo tipo de arquivo até exaurir o tema Maio de 68.
Mas ficção é ficção. No final das contas, Rio-Paris-Rio traz uns 2% a 3% de toda essa pesquisa. Não se trata, portanto, de um romance sobre a ditadura, sendo esta um pano de fundo. Mais do que um mero pano de fundo, um espectro, que está em tudo, aqui e ali, no Rio e em Paris, nos genes e corpos dos personagens, sem que se deem conta. Um espectro tão sutil quanto a Moral e Cívica que tentaram me impor goela abaixo na escola e que, desobediente, não aprendi. Pelo contrário, escrevi Rio-Paris-Rio, livro provavelmente iniciado naquelas aulas, naquele colégio, quando a ditadura regia meus gestos, afetos, rotinas, e de alguma forma eu já resistia.

Luciana Hidalgo é escritora e  doutora em Literatura Comparada (Uerj), com pós-doutorado na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris 3), na França, onde morou durante vários anos.