Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Revista Inutensílio - 1ª edição - Cinco poemas de Itárcio Ferreira




COMO FAZER UM POEMA

Primeiro, finja-se de morto,
distraído, o idiota da aldeia.
E como quem não quer nada,
agarre a perninha do poema.
Segure-a de leve, puxando-a com carinho.
Deite o poema no papel, sorria.
Balance o pequeno poema recém-nascido,
examine-o: cada letra, cada palavra, cada som, cada silêncio.
Banhe-o com a palavra solidariedade,
que só pode ser encontrada no vocabulário do socialismo.
Dispa-se de qualquer preconceito:
entregue-o ao leitor.

CINQUENTANOS

Quem é este que me olha do espelho
às seis da manhã
com os olhos ainda encharcados de sono?
De repente brincava de pião com os amigos de infância,
agora vejo, no reflexo do espelho, um homem cansado e incrédulo:
a face com rugas em que navegam sonhos não realizados.
O rosto no espelho me olha e pergunta-me quem sou.
Ontem, menino enamorado de minha primeira paixão,
hoje, avô e pai do meu pai a quem vejo, cada vez mais, em mim mesmo.
Espelho, por que não me avisaste que os anos passavam sem que eu percebesse?
Como? Me dizes que dia a dia me mostrasses o meu caminho sem volta?
Não vi, não percebeste? E o espelho sorrindo: “Agora é tarde! Agora é tarde!”.

CESTA DE MAÇÃS

Fumo e bebo em busca do êxtase.
Nada se cria venerando Apolo.
Meu sangue é música e sexo.
Cigano, tenho por prisão o meu trabalho.
Burocrata, dignifico o capital.
Ah! a grande noite cai sobre a liberdade,
e ela é tão pesada.
A burguesia não apenas fede, ofende e mata.
As morais religiosas me causam vômitos, às vezes risos.
Mas prefiro os vômitos.
Por que devo assinar um contrato de fidelidade?
Amo o meu amigo sem precisar ir ao cartório.
A monogamia é monótona pra caralho.
E na monogamia o caralho não sobe.
O tempo não para, mas o relógio sim.
Por que não bate logo as dezoito horas?
Chega de renascimentos,
que venha rápido a imperfeição.
Raul, hoje comprei uma cesta de maçãs.
O ruim é esta sensação de culpa,
herdada das lições de cristianismo;
uma azia constante
e a porra da gordura no fígado.

VIA LÁCTEA

Onde a noite esquivou-se?
A tristeza é meu cão guia.
O amor, bebo-o em grandes goles com gelo.
A alienação parece ser a pílula da felicidade.
Em branco, passo a compor a vida.
Desejos retesados quais cordas de um violino.
Desejei-a durante todo setembro, não a tive.
Outubro seguiu o som dos mergulhos.
Novembro, fiz aniversário.
Não sou nada.
Ocupo apenas os espaços esquecidos.
Silêncio.
Ninguém me ouve.
Reverbero-me em conchas e cristais.
O espaço é meu rádio.
O tempo, tenho-o de sobra,
mas não o posso aprisionar.

O ÁLCOOL

Como é líquido o bebo.
Mas se fosse sólido e maleável aos dentes o comeria.
Pedra? O destroçaria até o ponto de consumo.
Éter? Viajaria em sua órbita junto com minha solidão.
Ah o álcool e suas fantasias!
Já fui mouro, capitão, menino de recados, marinheiro,
bandido perigoso procurado pela polícia, um Lúcio Flávio,
um Mordido do Porco.
Viajei com Cervantes, Dom Quixote e seu fiel escudeiro, o Sancho Pança,
onde nos confraternizamos com Júlio Verne e Isaac Assimov.
O álcool, conhecido por todos os povos, junto com a nefasta religião.
Sem o álcool, sou um funcionário público de oitava categoria,
tentando entender o mundo através dos livros, da música e da poesia;
da mediocridade, que alguns chamam de meritocracia, dos amigos e das mulheres, todos perdidos.
Sem o álcool encontro o nada, sou o nada, busco o nada:
na solidão, no pulo do décimo sétimo andar.


Itárcio Ferreira nasceu em Carpina-PE (1962), mora em Recife. É poeta, contista e cantor. Publicou “Se Não Canto, Pelo Menos Grito” (poemas — 1983); “Apocalipse e Outros Poemas” (poemas — 1989); “A Construção e Outros Contos” (contos — 1991) e “Toda Colheita” (poemas — 2016). Em 2002 gravou o CD “Maracatu Prá Ela”. Publica seus poemas no blog “Itárcio Ferreira, poemas” (http://itarcioferreira.blogspot.com.br/).